Até 2006, uma das empresas de varejo de luxo, fundada há mais de 150 anos, estava crescendo apenas 2% ao ano, versus seus competidores franceses e italianos, cuja média era de 12%. Haviam perdido o foco, produzindo desde casacos e bolsas até camisas polo. A Burberry’s, uma das empresas mais tradicionais do mundo do varejo, criadora do famoso trenchcoat moderno, estava perdendo mercado vertiginosamente.
Com a entrada da nova CEO, Angela Ahrendts, a empresa iniciou sua jornada de transformação. Primeiro, decidiu focar nos produtos tradicionais, que fizeram a marca, como os trenchcoats. Segundo, escolheu o segmento millenial para direcionar as vendas. Terceiro, a partir dessas definições, a empresa re-estruturou seu portfolio de produtos e desenvolveu canais de comunicação próprios para atingir seu público-alvo: redes sociais, integração omnichannel, desfiles de novas coleções online, real time, com possibilidade de compra imediata via tablets, enfim, toda uma plataforma de interação com seus clientes. Seu faturamento praticamente dobrou em 2012 e a empresa tornou-se um case de sucesso (1).
A Schneider Electric, uma empresa francesa fundada em 1836, inicialmente produtora de aço e depois equipamentos de transporte e maquinaria pesada, apercebeu-se da ameaça que pairava sobre ela. Não só pequenos fornecedores locais estavam abocanhando seu mercado, mas o advento do e-commerce gerou ameaças de vários competidores, até então inexistentes.
Em 2009, a empresa decidiu iniciar seu processo de Transformação Digital, criando uma nova Visão: de “Fabricante de equipamentos elétricos e de automação” para “Provedora de soluções inteligentes de gestão de energia e de automação”. Em 2012, 39 por cento das receitas da empresa já vinham da venda de soluções, contra apenas 12 por cento em 2009 (2).
Qual dessas trajetórias é a “correta”? Obviamente esse conceito não se aplica, pois a transformação que essas empresas passaram não foi apenas “digital”, tecnológica, mas de modelo de negócio, de reformulação do portfolio de produtos, de público-alvo – e finalmente de tecnologia. Para tanto, essas empresas tiveram que passar por um questionamento profundo, uma vez que sua sobrevivência estava em jogo. Tiveram que elaborar, discutir, decidir e executar, de forma obstinada e planejada, uma Transformação Digital de sucesso. Esse questionamento pode ser traduzido em 6 perguntas estratégicas, das quais tratarei de 3 nesse artigo e 3 num próximo.
1. Quais são as nossas ameaças e oportunidades digitais?
Bancos, empresas de mídia, software, telecom e hotelaria, entre outras, são as mais ameaçadas atualmente por startups e plataformas digitais disruptivas. Para se identificar de forma consistente as reais ameaças ao negócio, e necessário que se analisem 2 aspectos: primeiro, o impacto dessas ameaças sobre sua empresa. Seu produto/serviço é eletronicamente especificável e passível de pesquisa na web? É distribuído (ou o será em 5 anos) de forma digital? Seu produto/serviço pode obter vantagens competitivas com informações adicionais? Corre o risco de ser substituído por algum produto/serviço digital? O segundo aspecto busca identificar qual o percentual de seu faturamento passível de ser abocanhado por essa nova concorrência. Empresas com faturamento de bilhões de dólares, bem estabelecidas e com ativos pesados são as mais propensas a esse tipo de ameaça.
As oportunidades digitais, por outro lado, serão consequência dos principais ativos da empresa: seu know-how, seu relacionamento e conhecimento dos clientes e sua marca. A Transformação Digital pode (e deve) aproveitar toda capacitação, ativos e vantagens competitivas atuais da empresa. É fundamental que os executivos busquem iniciar sua jornada digital a partir desses ativos estratégicos, eventualmente abrindo mão de produtos ou mercados que não estejam alinhados a esse futuro. A GE é um caso típico de empresa que abriu mão de unidades de negócio que traziam mais de USD 19 bilhões para se concentrar no que batizou de “Internet Industrial” (4).
2. Qual o modelo de negócio digital é o melhor para nosso futuro?
Conforme mencionado em meu artigo anterior (3) , pode-se identificar 4 modelos de negócio digital: fornecedores, produtores de nicho, omnichannel e plataformas digitais. No modelo “fornecedor”, a empresa terá pouca ou nenhuma interação com os clientes finais, revendendo indiretamente seus produtos. Empresas desse tipo corresponderão às empresas de B2B atuais, que apenas inaugurarão um canal online para suas vendas. No modelo “produtor de nicho”, o serviço comercializado é altamente tecnológico e integrável e, apesar de não ser o mais importante na cadeia de valor, representa uma referência em sua especialidade. O Paypal é um típico exemplo. No modelo “omnichannel” a empresa busca maximizar seu conhecimento sobre o cliente, propiciando a ele a melhor experiência possível, em qualquer hora, em qualquer lugar, de qualquer forma. Esse é o modelo adotado pelos varejos, cias. aéreas e de hotelaria. O modelo “plataforma digital” é o mais sofisticado e de maior lucratividade. Seu objetivo é ser o “destino final” de todos os clientes que buscam produtos (Amazon), serviços de seguro (Aetna) ou legislação (LexisNexis). A escolha do modelo de negócios digital dependerá de vários fatores tais como o nível de maturidade digital da empresa, natureza de seu mercado e produtos, volume de investimentos e intensidade de mudança que se deseja empreender.
3. Qual a nossa vantagem competitiva digital?
Na economia digital, as empresas podem se destacar por 3 tipos de vantagem competitiva: conteúdo, experiência e plataforma:
Conteúdo – para diferenciar-se nessa estratégia, é necessário que a empresa crie e atualize conteúdo de forma permanente e sistemática, tal como detalhes sobre os produtos e serviços, vídeos, opiniões de especialistas, comentários de clientes e redes sociais. A empresa precisa entender qual conteúdo agrada mais seus clientes e, principalmente, qual pode ser cobrado. Outro aspecto importante na estratégia de conteúdo é garantir a responsabilidade única pela sua geração e atualização, evitando assim sua pulverização e falta de coordenação. A estratégia de conteúdo é mais apropriada para as empresas que estejam ingressando na economia digital.
Experiência do consumidor – empresas que focam nessa estratégia buscam tornar a interação entre o consumidor e o conteúdo numa experiência fácil, rica, individual, interativa, rápida e multicanal, visando o aumento da receita por cliente. Os instrumentos normalmente utilizados são comunidades, dicas de especialistas, recomendações de outros clientes, formas alternativas de pesquisa, histórico de compras e de transações, opções de pagamento diversificadas e outras. O banco DBS, por exemplo, com sede em Singapura e faturamento de USD 7,3 bilhões, foi reconhecido em 2016 como melhor banco digital pela revista Euromoney e constitui um ótimo exemplo de experiência do consumidor num ramo de negócio extremamente padronizado (e enfadonho) como o ramo bancário (2).
Plataforma – a estratégia de plataforma consiste na melhor combinação de processos internos digitais, dados e infraestrutura com serviços externos para entrega dos produtos e serviços aos clientes. Na realidade estamos falando dos “ecosystem drivers”, empresas que são verdadeiros hubs num ecossistema controlado por elas, ocupando assim uma posição privilegiada na cadeia de valor. Um dos melhores exemplos é a Amazon, que une consumidores e produtores, com alto poder de barganha sobre esses últimos. Portanto, é fundamental que a plataforma da empresa seja facilmente integrável às plataformas dos parceiros externos e vice-versa. Igualmente importante é a capacidade da plataforma interna poder ser utilizada diretamente pelos clientes e parceiros, dando mais agilidade aos processos e melhorando a experiência do consumidor.
Referências
(1) Westerman, George. Leading Digital: Turning Technology into Business Transformation (Kindle Locations 488-489). Harvard Business Review Press. Kindle Edition.
(2) What’s Your Digital Business Model?: Six Questions to Help You Build the Next-Generation Enterprise Hardcover – May 8, 2018, by Peter Weill and Stephanie Woerner
(3) Artigo “TRANSFORMAÇÃO DIGITAL ASPECTOS ESTRATÉGICOS”, LinkedIn, by Sergio Hartenberg, em 21 de Maio de 2018: https://www.linkedin.com/pulse/transforma%C3%A7%C3%A3o-digital-aspectos-estrat%C3%A9gicos-sergio-hart-hartenberg
(4) General Electric, Annual Report, 2011.