A “Bíblia” mal interpretada
É impressionante a quantidade de artigos sobre o aparente sucesso das iniciativas digitais nas empresas. Do agro aos serviços, da infraestrutura ao varejo, parece que todas as corporações no mundo adotaram a mesma fé, foram visitar os mesmos startups no Vale do Silício e conversaram com as mesmas pessoas no Google, no Facebook e na Amazon.
No entanto, recente artigo no Valor Econômico começa com um título desconcertante: “Transformação Digital Está mais no Discurso que na Prática” (1). Considere também os seguintes eventos: uma indústria canavieira me pediu ajuda, porque não sabia o que fazer com suas 4 usinas que estavam “inovando” as mesmas coisas, ao mesmo tempo. Uma empresa de combustíveis me solicitou ajuda para transformar sua TI – apesar de ter montado um Lab. E uma concessionária de rodovias, com várias inovações operacionais em andamento, ainda não sabe como usar as tecnologias digitais garantir a manutenção de suas concessões.
Sem o devido direcionamento estratégico, integrado, mensurado e acima de tudo liderado pelos devidos responsáveis, as empresas correm sério risco de ficarem para trás, com muito inovação, mas nenhuma transformação – e investimentos jogados fora.
O que aconteceu com o Planejamento Estratégico
A febre (e a má interpretação) de “bíblias modernas” como o livro The Lean Startup, de Eric Ries (2), criou uma expectativa de que a experimentação substitui a reflexão estratégica. E isso tem gerado diversos efeitos sobre a qualidade das inovações nos negócios. É certo que metodologias como as de Michael Porter (3), isto é, a definição de estratégias para obtenção de “vantagens competitivas”, não se aplicam mais ao cenário atual. O Digital está pulverizando a fronteira entre os negócios, e portanto as antigas “barreiras de entrada” não mais existem. Fabricantes de automóveis se consideravam antigamente no business de “fabricação de carros”, mas agora estão no “negócio de mobilidade”, com um número inesperado de concorrentes vindos da indústria de software. Mas nem por isso o exercício estratégico desapareceu nem foi substituído por meras experimentações. Muito pelo contrário: tornou-se mais sofisticado, com um número de variáveis a considerar e de modelos a empreender muito maior. As estratégias de negócio atuais devem visar à transformação dos modelos de negócio, alavancadas pelas tecnologias digitais.
Como iniciar uma Estratégia Digital
Grandes empresas de consultoria estratégica oferecem projetos com duração de 2 a 3 meses, envolvendo toda alta gerência, as melhores práticas do mundo para aquele segmento e um plano de negócios – para aqueles quem tem tempo e dinheiro. Empresas pequenas, médias e mais pragmáticas, estão buscando uma reflexão mais rápida, com a contribuição simultânea de todas as áreas, para gerar uma visão única. Estão fazendo workshops para definir suas estratégias e montar um macro-plano de ação. Mesmo com iniciativas em andamento, vale à pena realizar um workshop para alinhar as visões e expectativas das áreas, identificar oportunidades de projetos transversais e criar uma formas únicas de liderança, engajamento e governança.
Por quê um Workshop
Não é raro a alta gerência ter dificuldades em compreender a importância de uma estratégia digital formal. A percepção é que basta viajar ao Vale do Silício, criar um Lab, colocar alguns startups funcionando (geralmente sob os cuidados de um gerente de inovação) e a inovação brotará espontaneamente. O Workshop tem sido uma alternativa aceitável para conscientizar os executivos de que há decisões importantes a serem tomadas, que poderão afetar o futuro da empresa com novos negócios ou novos modelos de negócio. Ao final, todos saem com uma Visão, uma idéia dos principais ativos que podem ser alavancados pelas tecnologias digitais, uma macro-estratégia e um plano de ação corporativo, unificado e direcionado.
Estrutura do Workshop
Para ser efetivo, um workshop de estratégia digital deve ter uma duração entre 1 e 2 dias, com um mix de apresentações e dinâmicas de grupo, onde executivos e especialistas possam debater. A agenda deve ser estruturada em 4 segmentos, de forma a facilitar o aprofundamento de ações a partir das perspectivas vislumbradas e das estratégias estabelecidas.
O 1o. segmento é o de Análises e Tendências. Caso a empresa possua uma estratégia de negócio, local ou global, é importante que seu CEO a apresente, como direcionador das estratégias e planos a seguir. É necessário também se entender o que a concorrência (atual e potencial) está realizando, o que os clientes estão demandando e os parceiros oferecendo. Mudanças nas expectativas dos clientes são forte indicação de como a empresa terá que mudar sua forma de interagir, seus produtos, serviços e até mesmo seu modelo de negócio. Visualizar as principais tecnologias emergentes no setor complementa esse contexto, ilustrando novas formas de produzir, operar, vender e atender os clientes.
O 2o. Segmento é voltado para o Modelo de Negócios e Definição de Estratégias. Os executivos deverão analisar o modelo de negócios atual e às seguintes questões: como podemos ampliar nossa proposição de valor com base em nossos ativos e capacitações? Qual macro-estratégia devemos adotar: foco no cliente, excelência operacional ou um novo modelo de negócio? Que clientes e mercados adicionais podemos atender? Quais parcerias viabilizam esses novos modelos? Podemos criar uma plataforma e sermos os donos de um ecossistema digital? Aqui um direcionamento único começa a ser desenhado, garantindo o alinhamento das iniciativas. Se a empresa adotar uma estratégia de “foco no cliente”, por exemplo, deverá priorizar todas as tecnologias, ações e modelos de negócio que facilitem a jornada do consumidor, aumentem a interação com eles e extraiam o máximo de informações para aprimoramento de serviços e produtos. Caso a estratégia escolhida seja de “excelência operacional”, a busca de tecnologias para integrar a cadeia de suprimentos, reduzir custos e tornar as operações mais rápidas e fáceis deve ser perseguida. Parcerias estratégicas deverão ser estabelecidas com fornecedores-chave, estendendo o escopo das inovações para toda a cadeia de valor. Uma estratégia de “novo modelo de negócio”, no caso uma plataforma, vai requerer que a empresa concentre seus esforços na construção da plataforma e no estabelecimento do ecossistema de parcerias.
O 3o. segmento trata da Identificação de Ações e Prioridades. Uma vez estabelecidas a macro-estratégia, as capacitações sobre as quais a empresa irá se alavancar e os novos produtos, negócios ou modelos de negócio, os executivos deverão identificar as principais inovações e ações, por área. Após esse “brainstorming”, as propostas deverão ser priorizadas conforme o grau de alinhamento às estratégias definidas e benefício gerado para o negócio. As propostas priorizadas deverão ser detalhadas num Programa de Transformação Digital.
O 4o. e último segmento diz respeito à garantia de sucesso dessa jornada. As seguintes questões deverão aqui ser respondidas: quem deverá liderar a jornada de Transformação Digital? Qual a equipe que deverá coordenar esse programa? Como será exercida a Governança dessa jornada, isto é, qual a organização, a metodologia, os KPIs e metas que serão utilizados para acompanhar o progresso dessas iniciativas? Como engajar a empresa, em todos os níveis, para essa jornada? Qual o nível de maturidade digital atual da empresa? Qual o nível requerido e como capacitar as pessoas para atingi-lo? Qual será o impacto organizacional das novas tecnologias e das novas responsabilidades/funções na empresa? A resposta a essas perguntas aumentará as chances de sucesso da jornada, uma vez que esses são os pontos mais difíceis de serem visualizados e abordados durante uma Transformação
O Workshop não é tudo…
Certamente um evento como esses gerará mais perguntas do que respostas – e é exatamente esse o objetivo. A conscientização dos executivos terá expandido largamente; aspectos até então negligenciados ou ignorados serão considerados; silos funcionais terão se transformado em linhas de serviço para atender aos clientes. E novas possibilidades de negócio, até então ocultas, poderão se revelar. O workshop não é tudo, mas é um primeiro passo.
Quem sabe um divisor de águas, a partir do qual sua empresa perceberá a importância de uma ampla Estratégia de Transformação Digital?
Referências
(1) Valor Econômico, 28/11/2018, por Gustavo Brigatto.
(2) The Lean Startup: How Today’s Entrepreneurs U… (Hardcover), by Eric Ries, 2011
(3) Competitive Advantage: Creating and Sustaining Superior Performance, Jun 1, 1998, by Michael E. Porter